Escrevi esse texto em meados do ano passado, atualizado hoje devido as últimas mudanças. São algumas reflexões, informações e atualizações. A quem possa se interessar.
Morei praticamente minha vida inteira na cidade grande. Dentro do sistema. Minhas raízes vêm do rock, do skate. Do punk rock, do asfalto. Mas também sempre tive grande afinidade com o reggae. Desde cedo tive contato com a natureza e o que mais me recordo são as temporadas de verão que passava com minha família na casa onde morei até maio passado.
Com o passar dos anos, sempre que possível passando bons tempos no litoral fui desenvolvendo uma grande ligação com o oceano, prestando atenção, tentando entender e aprender sobre o funcionamento dos fenômenos naturais.
O sistema, o caos, a babilônia. O natural, a fluidez, a liberdade. Isso sempre foi um grande contraste para mim.
Sempre busquei formas de me desvincular desse sistema 9 às 18. Tenho apenas um ano e meio de carteira assinada, da época que trabalhei como office-boy na administração do shopping Mueller nos anos de 1998 e 1999. Quando sai desse serviço peguei o seguro desemprego e fiquei três meses “morando” acampado no canto da Vó na Ilha do Mel.
Resumindo: com minhas raízes, valores, conceitos, estudos, pesquisas, experiências pessoais e até mesmo influências musicais não tenho como acreditar nesse sistema projetado e construído a muitos e muitos anos que tem como grande objetivo o empobrecimento cultural, financeiro e psicológico de muitos e o enriquecimento brutal e sem escrúpulos de poucos.
Em 2002 me formei em Desenho Industrial, mesmo ano que meu pai faleceu e um mês depois minha filha nasceu. Nos anos seguintes trabalhei nos bastidores de uma emissora de TV, depois com produção de vídeos e foi nessa época que entrei em contato com o Yoga, praticando bastante e participando de um curso de formação de instrutores.
Nesse período de produção de vídeos de esportes radicais, mais especificamente o Bodyboarding, acabei estreitando e fortalecendo a amizade com a pessoa que me deu a oportunidade de aprender, da maneira mais correta na minha opinião, o ofício de tatuador.
"Artfusion" com meu amigo Chris Name. 2013. ft.: Camilo Donoso
Numa época em que ter tatuagem não era “cool”, coisa de pessoas “descoladas”. O mundo da tattoo não existia na grande mídia. Éramos minoria, muito preconceito e por incrível que pareça isso é coisa que ainda existe nos dias de hoje. Não tinha “estúdio de tattoo” em todas as esquinas, existia respeito e admiração por aqueles que vieram antes, os desbravadores desse caminho.
Porém o sistema é traiçoeiro, tem muitas armadilhas e tentações e é bem fácil se distrair do foco e se perder no caminho. Durante um bom tempo acabei seguindo e batalhando por objetivos e sonhos que não eram meus.
Mas tudo tem seu propósito.
"Estúdio grande". 2014. ft.: Nicolas Delavy
Pulando alguns anos e indo direto para 2015, me mantendo firme em meus princípios deixei para trás todo “glamour” de estúdio grande em Curitiba e aproveitando uma oportunidade fui morar com minha família em Barra Velha, uma cidade pequena no litoral norte de Santa Catarina, com o objetivo de poder vivenciar um estilo de vida mais simples.
Por um ano ainda mantive um espaço para tatuar em Curitiba e na praia peguei muita onda boa. Tive o privilégio de pegar todos os picos próximos de minha casa em condições épicas e na maioria das vezes apenas com os amigos. Surfei. Vivi o sonho. Céu.
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Porém os sonhos não duram para sempre e no final de 2016 tive uma lesão no ombro que desencadeou uma grave inflamação conhecida por capsulite adesiva ou síndrome do ombro congelado. Situação essa que me privou de fazer desde as tarefas mais simples como escovar os dentes até as coisas que mais gosto, como pegar ondas. Também me deixou impossibilitado de tatuar por um grande e sofrido período. Lesão, depressão, algumas vezes pensando em suicídio. Fundo do poço, escuridão total.
Precisei de muito apoio de quem estava próximo e muita força de vontade. Sem plano de saúde, sem cirurgia, foram quase dois anos de fisioterapia. Por necessidade física, voltei aos estudos e a prática regular de Yoga pois minha lesão é retroativa, se não manter o corpo em atividade a inflamação volta, podendo “adesivar” novamente toda a região do ombro e escápula.
"Quem tá junto, tá junto"!
Nessa época sem muito trabalho aproveitei para estudar, evoluir. E o autoconhecimento leva inevitavelmente a expansão da consciência. Buscando informações voltei aos livros, referências, nomes e pesquisando na internet uma coisa vai levando a outra e as peças começam a se encaixar. Quem procura acha. E num choque de realidade, o buraco fica cada vez mais fundo e é necessário ter muita humildade para desaprender e reaprender.
Já tem muito tempo que venho pensando e conversando com amigos sobre isso. Acredito que precisamos ajudar as pessoas que se dão a opção da dúvida, a possibilidade de questionar suas crenças muitas vezes limitantes, de refletir sobre seus preconceitos e paradigmas. Para aqueles que querem acordar e sair do modo automático, atualmente temos muita informação e diversas ferramentas à disposição.
Não podemos nos omitir e na medida do possível, cada um dentro de suas possibilidades e com suas habilidades devem fazer sua parte e quem quiser estar junto, interagir em busca de evolução será sempre bem-vindo.
"Casa Amarela" - Sucos e Lanches Saudáveis.
Entre os dias de luta e os dias de glórias ficamos quase quatro anos morando na praia. No meio do período da lesão tatuei bem pouco e tivemos a oportunidade de nos dedicar a outras atividades. Recebemos muitas pessoas legais, alguns já “de casa” e outras amizades que foram feitas compartilhando bons momentos a beira mar. Mesmo não estando em contato direto, são amigos que podemos considerar para vida toda.
Em maio desse ano resolvemos voltar para a região de Curitiba, mais precisamente para Campo Magro estando novamente mais próximos dos familiares e da maioria dos clientes. Para o choque de realidade não ser tão forte optamos por um local sossegado, mesmo estando apenas 15 minutos de Santa Felicidade.
Nova fase. Novos projetos. ft.: Marcella Kaspezak.
Por aqui já estou com um espaço para atender os amigos e os clientes que já tem tattoo minha. E agora com a logística organizada estou revisitando os estúdios de meus amigos em Curitiba para ter também alguns dias da semana para trocar uma ideia com os novos clientes e aqueles que tem interesse em conhecer e saber como funciona meu trabalho.
Agradeço muito por ter tido a oportunidade de poder realizar um sonho antigo, morar de frente para praia com minha família, o que sem dúvidas foi uma época muito especial em minha vida. Fim de um ciclo para outro se iniciar. E agora volto firme as atividades e novos projetos. Em breve novidades. Fiquem ligados. Valeu!
quarta-feira, 31 de julho de 2019
sexta-feira, 26 de julho de 2019
História de um Rancho
"Nossa casa é nosso agasalho, nosso refúgio, nossa igreja, nosso lar." Por: Hélio Pimentel (meu avô).
Texto original escrito por volta de 1955.
Para reformar nosso rancho em Barra Velha, SC, contratamos os serviços de dois bons profissionais, residentes naquela cidade, chamados João e Cardoso. Com eles convivemos mais de dois meses, no curioso trabalho de reparos do velho e querido rancho, que nos abriga com tanto carinho
há mais de trinta anos.
Derrubá-lo, para construir uma nova casa, seria o mesmo que enterrar um passado cheio de doces recordações e edificar um presente que, por certo, não teria o mesmo encanto, a não ser num futuro muito distante.
Aqui convivemos com nossos pais, nossos irmãos, cunhadas e sobrinhos. Hospedamos nossos parentes e amigos.
Depois, vieram os nossos dois filhos que durante muitos anos, todos os verões, e, algumas vezes no inverno, passavam aqui suas férias.
Acampamentos, pescarias, passeio de canoa na lagoa e no mar. Visita às redondezas.
Os mais velhos de nossa família já partiram. Os novos,
filhos, noras e netos, continuam a frequentar esta praia e habitar este rancho.
Agora, estava na hora de cuidar do nosso abrigo que como nós, envelheceu, e como nós, precisava de ser bem cuidado para não ruir, para não desmoronar.
Começamos, então, o trabalho de recuperação.
Realmente, ele estava surrado ao longo do tempo pelos ventos do mar. O vento sul, frio e úmido, penetrou impiedosamente pelas frestas e salitrou as ferragens, enferrujando trincos, dobradiças, fechaduras, pregos e parafusos. Descorou a pintura.
Lembro-me, como se fosse hoje, quando o rancho ficou pronto e toda a nossa família veio para o primeiro veraneio.
Éramos quatro irmãos, quatro esposas, pai, mãe
e quatro crianças.
O rancho com treze metros de frente e sete metros de fundo, dividido em quatro quartos; uma sala de refeições e visita juntas; cozinha, despensa, banheiro, área externa atijolada, conta na parte de traz com uma garagem, quarto de empregada, uma pequena cozinha e uma churrasqueira.
Os pés direitos da frente com sete metros de altura, sustentam todo o vigamento e paredes de madeira de pinho.
Originalmente, parte da madeira utilizada nas paredes foi adquirida de um empreiteiro de obras da construção da ponte do rio Tibagi, em Ponta Grossa. O restante de todo madeirame e telhas foram comprados na serraria e olaria da mesma cidade.
Com esse material construí esse mesmo rancho na minha chácara, na Vila Vicentina, em Ponta Grossa, PR.
Lá ele recebeu inúmeras personalidades que iam visitar as plantações de arroz do sequeiro, trigo, soja, milho e outras plantações, nos idos de 1950.
De lá, ele foi transportado de caminhão e montado aqui, à beira mar, na praia de Barra Velha.
No dia que agasalhou toda nossa família, ventava o lestão.
Parecia um desafio ao intruso rancho que vindo de outras plagas, do segundo planalto paranaense, construído com o madeirame daquela região, ousasse enfrentar solitariamente, alicerçado na solta areia da praia, o vendaval oceânico
vindo do leste. Anoitecia, e cada vez mais, o mar rugia e a lestada assoprava violentamente, como se o mundo todo fosse desabar.
O rancho tremeu e gemeu. A madeira estalou e lá fora, cada vez mais, a ventania em sucessivos golpes batia mais forte nas paredes do rancho.
Nunca assisti um temporal tão fantástico e, coisa curiosa, todos que se encontravam dentro do rancho ficaram silenciosos e confiantes que ele venceria a hostilidade do vendaval, naquele embate tão estranho e surpreendente
para ele.
A partir daquele dia amei com admiração a pequena e simples construção, uma das primeiras a ser levantada ao longo da costa da praia, quando não havia luz elétrica, nem água encanada, longe da civilização.
Os ventos do nordeste e terral, também sopram nesta região. O primeiro trazendo aviso aos pescadores e banhistas, de água e ventos quentes. O segundo, que vem do lado da terra ocasionalmente, trazendo mosquitos, insetos e cheiro de terra molhada, morna e abafada - ventos dos montes.
Meus sogros presentearam minha mulher com o terreno no dia do aniversário dela. O rancho foi uma homenagem minha à ela, mãe do nosso primogênito que estava por vir.
Meu pai, patriarca da família, enamorou-se de Barra Velha desde a primeira vez que a viu, e transmitiu a todos nós aquele amor, dizendo sempre que aquele lugar era obra de Deus e que era preciosa a seus olhos.
Sentimentalmente, toda família está ligada a sua casa, seja ela um rancho, ou um palácio. Esteja ela na cidade ou na roça. Num país rico ou no terceiro mundo.
A nossa casa é um sacramento e só deve receber e hospedar pessoas que nos são gratas.
Ela é o nosso agasalho, nosso refúgio, nossa igreja, nosso lar.
Amo-te muito, meu querido rancho.
Aqui tenho vivido muito feliz. As recordações do passado
são límpidas e queridas, os dias de agora são ternos e no porvir meus descendentes irão procurar o seu conforto
e sua simplicidade.
Lá, nos campos gerais, também esses ventos castigaram o então jovem rancho, em dias das geadas e do vento sul, fino, frio, chuvoso. O mesmo daqui de Barra Velha que vindo da Patagônia subindo a Serra do Mar ascende a quase mil metros de altitude. Aqui, ele traz na sua esteira, os cardumes de tainha e de outros peixes que desovam ao longo da lagoa
e do rio Itapocu, num ritual ecológico secular, procriando
as espécies. A pesca predatória tanto da tainha, como do camarão, deveria ser rigidamente controlada pelo governo.
Lá, esse mesmo vento, queima as pastagens e as plantações que são suscetíveis às geadas. Mas por outro lado, beneficia as chamadas culturas de inverno, como por exemplo, o trigo, e mata as larvas e insetos daninhos. É o equilíbrio da natureza que tantas vezes o homem impiedosamente rompe.
- Pai, rancho tem alma? Perguntou-me um dia meu filho.
Respondi-lhe: - Sabe meu filho, um dia, há muitos anos, eu senti o rancho tremer, gemer e estalar de raiva na luta contra o vento leste, durante uma terrível borrasca. Parecia um ser humano enfrentando um terrível e violento inimigo. Ele se comportou com aquela coragem digna de um general num campo de batalha que sabe honrar e respeitar o adversário. Sacudiu-se todo, tremeu, estralava, gritava - um grito de guerra - por entre o assobio do vento e o bufar do mar.
Ele sabia que nós estávamos sob sua guarda, sob a proteção de suas paredes e de seu teto, e quis transmitir a todos nós, a tranquilidade da sua resistência. Depois que a natureza se aquietou, ele humildemente silenciou em respeito ao término da luta, e eu ouvi vagamente, naquele momento, que ele estava pedindo desculpas pelas goteiras que molharam o chão e as camas. Aí, eu disse baixinho a ele: obrigado meu rancho, as goteiras são as feridas do combate que você travou, e ao acariciar com as mãos a viga mestre da parede, tive a impressão de sentir um coração bater.
Cada vez que aqui vinha, ou no instante de cada despedida, nunca deixei de tocar levemente a mão esquerda na parede mais alta, exatamente naquela que sempre me pareceu estar localizado o cerne da construção. Bem ali, na coluna-mestre, vertebral, deveria estar o seu coração. Coração feito de tecido, fibra, células, sais minerais, seiva-vida vegetal.
Há algo de fantástico no elo que separa o reino vegetal do animal. Há, todavia, uma estreita ligação entre eles. A seiva e o sangue. As células, os órgãos, a respiração, a semente e o ovo. No homem o mistério da inteligência. Nos vegetais o mistério da fotossíntese. A vida!
Quando iniciamos os reparos do rancho, casualmente, ou por força do instinto ou da saudade, comecei exatamente ali naquele ponto.
E, outra vez, inesperadamente, toquei naquela parede com a mão e disse baixinho: - Meu velho e querido amigo, desculpe-me o mau trato que lhe dei nestes últimos anos quando passava correndo, apressado e desassossegado por aqui.
A vida exigiu de mim este atropelo, mas isto, é um outro capítulo. Um dia eu vou aquietar e contar para você toda a minha vida e você pode ficar certo que foi aqui que passei os dias mais tranquilos e felizes da minha vida.
A vida da gente oscila entre a tranquilidade e o desassossego.
Foi bem ali que coloquei o macaco e levantei o rancho e, novamente, ouvi o ranger da madeira como se fosse um carinhoso murmúrio.
Ele estava um pouco inclinado na direção leste-oeste. O alicerce, todo maciço de madeira de imbuia, havia escavado a areia ao seu redor e a viga mestra rebaixou-se e inclinou-se quinze centímetros. Todo o rancho acompanhou aquela inclinação.
Mandei tirar as tábuas do assoalho e bem no canto das paredes em cima do alicerce, assentei e levantei a viga mestra com cautela. Lentamente ela voltou a sua posição original e também todo o rancho.
João e Cardoso entreolharam-se e disse o primeiro:
- "que tal nós", ouvindo-se do Cardoso a exclamação - Ê!
Será que eles ouviram aquele perceptível, suave e encantador murmúrio? Será que eles perceberam que eu toquei delicadamente a mão sobre a viga mestra?
Calçamos e reforçamos a base da viga em cima do alicerce. Retiramos o macaco hidráulico que não tinha mais de vinte centímetros de altura e uma pequena alavanca.
Contei ao João e Cardoso o enunciado por Arquimedes
- a lei das alavancas - "dai-me um ponto de apoio
e moverei a Terra".
- Que tal nós! Quem foi esse tal de Arquimedes?
perguntou o João.
- Arquimedes, foi um matemático e inventor grego, nascido em 212 antes de Cristo, em Siracusa, na Sicília. Ele estudou em Alexandria, no Egito, e procurava sempre aproveitar os resultados de seus engenhos mecânicos para facilitar e dar maior rendimento ao trabalho manual.
- Calcule, levantar com os braços esse rancho, hein Cardoso!
- Se não é este Arquimedes!
Pusemos o rancho em posição correta, usando um pequeno nível de pedreiro e um de bolha de ar.
Depois, substituímos as ferragens, pintamos todas as paredes de branco; as portas, venezianas e beiral de verde; e, parte da fachada de marrom. Cuidamos do jardim e do quintal. Ficou lindo, todo novo!
Minha companheira, cuidou de embelezar o rancho, escolhendo as cores das tintas; enfeitando por dentro, com peças da região: um oratório de madeira com uma
Nossa Senhora trabalhada em madeira; uma arca antiga,
um monjolo, lustres rústicos de peneira, uma miniatura de carro de boi, uma roca perfeita e um espinhel de pesca. Forrou as paredes da sala de jantar e visita com esteira de peri e as envernizou.
Todas as noites após o trabalho, minha esposa preparava uma boa porção de peixe e camarões fritos, e outras iguarias deliciosas.
O ar lá fora estava frio, naquela noite de inverno. Soprava o vento sul. O céu estava recamado de estrelas. O mar calmo refletia o brilho da lua cheia que surgia no horizonte.
Pensei como aquilo tudo tinha sido doado ao homem.
Ali estava viva e eterna a Natureza.
Ali está o nosso rancho.
Fotos: Arquivo Pessoal e Família Pimentel.
Antigas de Barra Velha: Internet.
Texto original escrito por volta de 1955.
Para reformar nosso rancho em Barra Velha, SC, contratamos os serviços de dois bons profissionais, residentes naquela cidade, chamados João e Cardoso. Com eles convivemos mais de dois meses, no curioso trabalho de reparos do velho e querido rancho, que nos abriga com tanto carinho
há mais de trinta anos.
Derrubá-lo, para construir uma nova casa, seria o mesmo que enterrar um passado cheio de doces recordações e edificar um presente que, por certo, não teria o mesmo encanto, a não ser num futuro muito distante.
Aqui convivemos com nossos pais, nossos irmãos, cunhadas e sobrinhos. Hospedamos nossos parentes e amigos.
Depois, vieram os nossos dois filhos que durante muitos anos, todos os verões, e, algumas vezes no inverno, passavam aqui suas férias.
Acampamentos, pescarias, passeio de canoa na lagoa e no mar. Visita às redondezas.
Os mais velhos de nossa família já partiram. Os novos,
filhos, noras e netos, continuam a frequentar esta praia e habitar este rancho.
Agora, estava na hora de cuidar do nosso abrigo que como nós, envelheceu, e como nós, precisava de ser bem cuidado para não ruir, para não desmoronar.
Começamos, então, o trabalho de recuperação.
Realmente, ele estava surrado ao longo do tempo pelos ventos do mar. O vento sul, frio e úmido, penetrou impiedosamente pelas frestas e salitrou as ferragens, enferrujando trincos, dobradiças, fechaduras, pregos e parafusos. Descorou a pintura.
Lembro-me, como se fosse hoje, quando o rancho ficou pronto e toda a nossa família veio para o primeiro veraneio.
Éramos quatro irmãos, quatro esposas, pai, mãe
e quatro crianças.
O rancho com treze metros de frente e sete metros de fundo, dividido em quatro quartos; uma sala de refeições e visita juntas; cozinha, despensa, banheiro, área externa atijolada, conta na parte de traz com uma garagem, quarto de empregada, uma pequena cozinha e uma churrasqueira.
Os pés direitos da frente com sete metros de altura, sustentam todo o vigamento e paredes de madeira de pinho.
Originalmente, parte da madeira utilizada nas paredes foi adquirida de um empreiteiro de obras da construção da ponte do rio Tibagi, em Ponta Grossa. O restante de todo madeirame e telhas foram comprados na serraria e olaria da mesma cidade.
Com esse material construí esse mesmo rancho na minha chácara, na Vila Vicentina, em Ponta Grossa, PR.
Lá ele recebeu inúmeras personalidades que iam visitar as plantações de arroz do sequeiro, trigo, soja, milho e outras plantações, nos idos de 1950.
De lá, ele foi transportado de caminhão e montado aqui, à beira mar, na praia de Barra Velha.
No dia que agasalhou toda nossa família, ventava o lestão.
Parecia um desafio ao intruso rancho que vindo de outras plagas, do segundo planalto paranaense, construído com o madeirame daquela região, ousasse enfrentar solitariamente, alicerçado na solta areia da praia, o vendaval oceânico
vindo do leste. Anoitecia, e cada vez mais, o mar rugia e a lestada assoprava violentamente, como se o mundo todo fosse desabar.
O rancho tremeu e gemeu. A madeira estalou e lá fora, cada vez mais, a ventania em sucessivos golpes batia mais forte nas paredes do rancho.
Nunca assisti um temporal tão fantástico e, coisa curiosa, todos que se encontravam dentro do rancho ficaram silenciosos e confiantes que ele venceria a hostilidade do vendaval, naquele embate tão estranho e surpreendente
para ele.
A partir daquele dia amei com admiração a pequena e simples construção, uma das primeiras a ser levantada ao longo da costa da praia, quando não havia luz elétrica, nem água encanada, longe da civilização.
Os ventos do nordeste e terral, também sopram nesta região. O primeiro trazendo aviso aos pescadores e banhistas, de água e ventos quentes. O segundo, que vem do lado da terra ocasionalmente, trazendo mosquitos, insetos e cheiro de terra molhada, morna e abafada - ventos dos montes.
Meus sogros presentearam minha mulher com o terreno no dia do aniversário dela. O rancho foi uma homenagem minha à ela, mãe do nosso primogênito que estava por vir.
Meu pai, patriarca da família, enamorou-se de Barra Velha desde a primeira vez que a viu, e transmitiu a todos nós aquele amor, dizendo sempre que aquele lugar era obra de Deus e que era preciosa a seus olhos.
Sentimentalmente, toda família está ligada a sua casa, seja ela um rancho, ou um palácio. Esteja ela na cidade ou na roça. Num país rico ou no terceiro mundo.
A nossa casa é um sacramento e só deve receber e hospedar pessoas que nos são gratas.
Ela é o nosso agasalho, nosso refúgio, nossa igreja, nosso lar.
Amo-te muito, meu querido rancho.
Aqui tenho vivido muito feliz. As recordações do passado
são límpidas e queridas, os dias de agora são ternos e no porvir meus descendentes irão procurar o seu conforto
e sua simplicidade.
Lá, nos campos gerais, também esses ventos castigaram o então jovem rancho, em dias das geadas e do vento sul, fino, frio, chuvoso. O mesmo daqui de Barra Velha que vindo da Patagônia subindo a Serra do Mar ascende a quase mil metros de altitude. Aqui, ele traz na sua esteira, os cardumes de tainha e de outros peixes que desovam ao longo da lagoa
e do rio Itapocu, num ritual ecológico secular, procriando
as espécies. A pesca predatória tanto da tainha, como do camarão, deveria ser rigidamente controlada pelo governo.
Lá, esse mesmo vento, queima as pastagens e as plantações que são suscetíveis às geadas. Mas por outro lado, beneficia as chamadas culturas de inverno, como por exemplo, o trigo, e mata as larvas e insetos daninhos. É o equilíbrio da natureza que tantas vezes o homem impiedosamente rompe.
- Pai, rancho tem alma? Perguntou-me um dia meu filho.
Respondi-lhe: - Sabe meu filho, um dia, há muitos anos, eu senti o rancho tremer, gemer e estalar de raiva na luta contra o vento leste, durante uma terrível borrasca. Parecia um ser humano enfrentando um terrível e violento inimigo. Ele se comportou com aquela coragem digna de um general num campo de batalha que sabe honrar e respeitar o adversário. Sacudiu-se todo, tremeu, estralava, gritava - um grito de guerra - por entre o assobio do vento e o bufar do mar.
Ele sabia que nós estávamos sob sua guarda, sob a proteção de suas paredes e de seu teto, e quis transmitir a todos nós, a tranquilidade da sua resistência. Depois que a natureza se aquietou, ele humildemente silenciou em respeito ao término da luta, e eu ouvi vagamente, naquele momento, que ele estava pedindo desculpas pelas goteiras que molharam o chão e as camas. Aí, eu disse baixinho a ele: obrigado meu rancho, as goteiras são as feridas do combate que você travou, e ao acariciar com as mãos a viga mestre da parede, tive a impressão de sentir um coração bater.
Cada vez que aqui vinha, ou no instante de cada despedida, nunca deixei de tocar levemente a mão esquerda na parede mais alta, exatamente naquela que sempre me pareceu estar localizado o cerne da construção. Bem ali, na coluna-mestre, vertebral, deveria estar o seu coração. Coração feito de tecido, fibra, células, sais minerais, seiva-vida vegetal.
Há algo de fantástico no elo que separa o reino vegetal do animal. Há, todavia, uma estreita ligação entre eles. A seiva e o sangue. As células, os órgãos, a respiração, a semente e o ovo. No homem o mistério da inteligência. Nos vegetais o mistério da fotossíntese. A vida!
Quando iniciamos os reparos do rancho, casualmente, ou por força do instinto ou da saudade, comecei exatamente ali naquele ponto.
E, outra vez, inesperadamente, toquei naquela parede com a mão e disse baixinho: - Meu velho e querido amigo, desculpe-me o mau trato que lhe dei nestes últimos anos quando passava correndo, apressado e desassossegado por aqui.
A vida exigiu de mim este atropelo, mas isto, é um outro capítulo. Um dia eu vou aquietar e contar para você toda a minha vida e você pode ficar certo que foi aqui que passei os dias mais tranquilos e felizes da minha vida.
A vida da gente oscila entre a tranquilidade e o desassossego.
Foi bem ali que coloquei o macaco e levantei o rancho e, novamente, ouvi o ranger da madeira como se fosse um carinhoso murmúrio.
Ele estava um pouco inclinado na direção leste-oeste. O alicerce, todo maciço de madeira de imbuia, havia escavado a areia ao seu redor e a viga mestra rebaixou-se e inclinou-se quinze centímetros. Todo o rancho acompanhou aquela inclinação.
Mandei tirar as tábuas do assoalho e bem no canto das paredes em cima do alicerce, assentei e levantei a viga mestra com cautela. Lentamente ela voltou a sua posição original e também todo o rancho.
João e Cardoso entreolharam-se e disse o primeiro:
- "que tal nós", ouvindo-se do Cardoso a exclamação - Ê!
Será que eles ouviram aquele perceptível, suave e encantador murmúrio? Será que eles perceberam que eu toquei delicadamente a mão sobre a viga mestra?
Calçamos e reforçamos a base da viga em cima do alicerce. Retiramos o macaco hidráulico que não tinha mais de vinte centímetros de altura e uma pequena alavanca.
Contei ao João e Cardoso o enunciado por Arquimedes
- a lei das alavancas - "dai-me um ponto de apoio
e moverei a Terra".
- Que tal nós! Quem foi esse tal de Arquimedes?
perguntou o João.
- Arquimedes, foi um matemático e inventor grego, nascido em 212 antes de Cristo, em Siracusa, na Sicília. Ele estudou em Alexandria, no Egito, e procurava sempre aproveitar os resultados de seus engenhos mecânicos para facilitar e dar maior rendimento ao trabalho manual.
- Calcule, levantar com os braços esse rancho, hein Cardoso!
- Se não é este Arquimedes!
Pusemos o rancho em posição correta, usando um pequeno nível de pedreiro e um de bolha de ar.
Depois, substituímos as ferragens, pintamos todas as paredes de branco; as portas, venezianas e beiral de verde; e, parte da fachada de marrom. Cuidamos do jardim e do quintal. Ficou lindo, todo novo!
Minha companheira, cuidou de embelezar o rancho, escolhendo as cores das tintas; enfeitando por dentro, com peças da região: um oratório de madeira com uma
Nossa Senhora trabalhada em madeira; uma arca antiga,
um monjolo, lustres rústicos de peneira, uma miniatura de carro de boi, uma roca perfeita e um espinhel de pesca. Forrou as paredes da sala de jantar e visita com esteira de peri e as envernizou.
Todas as noites após o trabalho, minha esposa preparava uma boa porção de peixe e camarões fritos, e outras iguarias deliciosas.
O ar lá fora estava frio, naquela noite de inverno. Soprava o vento sul. O céu estava recamado de estrelas. O mar calmo refletia o brilho da lua cheia que surgia no horizonte.
Pensei como aquilo tudo tinha sido doado ao homem.
Ali estava viva e eterna a Natureza.
Ali está o nosso rancho.
Fotos: Arquivo Pessoal e Família Pimentel.
Antigas de Barra Velha: Internet.
sábado, 13 de julho de 2019
13.02.19 - Julian
Postagem mais que clássica. Muita história envolvida nessa tattoo. Acho até um pouco complicado pra resumir em apenas uma postagem, mas vamos por partes. Essa foi a última sessão com registros em alta qualidade dos trabalhos feitos em Barra Velha / SC. Tattoo feita para meu amigo Julian, que eu não encontrava há alguns anos, desde que estudamos Design de Produto no início dos anos 2.000. Atualmente ele trabalha com sua Kombi "Abigail", uma kombi-foto-cabine, projeto muito legal que vem se desenvolvendo há alguns anos. Estando a caminho de um evento em Balneário Camboriu, combinou de passar uns dias conosco na beira mar e curtiu tanto "o rolê" que resolveu eternizar na pele o momento. Só posso agradecer pela oportunidade de fazer uma tatuagem tão especial como essa, muitas lembranças e memórias que irei contar em uma futura postagem. Essa tatuagem também marca o fim de um ciclo, encerrando os trabalhos no litoral, retornando com minha família para a região de Curitiba ficando mais próximos dos familiares e da maioria dos clientes. E pra não ficar cansativo já estou preparando uma postagem especial contando um pouco sobre esses quase 04 anos que passamos em Barra Velha. Valeu, bom fim de semana a todos!A post more than classic. A lot of history involved in this tattoo. I find it a bit complicated to summarize in just one post, but let's make it in parts. This was the last session that were made some high quality photos of the works done in Barra Velha / SC. Tattoo made for my friend Julian, which I did not encounter for a few years, since we studied Product Design in the early 2000s. Currently he works with his Kombi "Abigail", a photo-cabin inside the Van, a very cool project that has been developing for some years. Being on his way to an event in Balneário Camboriu, he combined to spend some days with us in the sea shore and he enjoyed the trip so much that he decided to eternalize the moment. I can only thank for the opportunity to make a tattoo as special as this, so many memories that I will tell in a future post. This tattoo also marks the end of a cycle, finishing the works on the coast, returning with my family to the region of Curitiba getting closer to the relatives and most of the clients. And not to be tiring I'm already preparing a special post telling a little about those almost 04 years that we spent in Barra Velha. Thanks, have a good weekend everyone!
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