"Nossa casa é nosso agasalho, nosso refúgio, nossa igreja, nosso lar." Por: Hélio Pimentel (meu avô).
Texto original escrito por volta de 1955.
Para reformar nosso rancho em Barra Velha, SC, contratamos os serviços de dois bons profissionais, residentes naquela cidade, chamados João e Cardoso. Com eles convivemos mais de dois meses, no curioso trabalho de reparos do velho e querido rancho, que nos abriga com tanto carinho
há mais de trinta anos.
Derrubá-lo, para construir uma nova casa, seria o mesmo que enterrar um passado cheio de doces recordações e edificar um presente que, por certo, não teria o mesmo encanto, a não ser num futuro muito distante.
Aqui convivemos com nossos pais, nossos irmãos, cunhadas e sobrinhos. Hospedamos nossos parentes e amigos.
Depois, vieram os nossos dois filhos que durante muitos anos, todos os verões, e, algumas vezes no inverno, passavam aqui suas férias.
Acampamentos, pescarias, passeio de canoa na lagoa e no mar. Visita às redondezas.
Os mais velhos de nossa família já partiram. Os novos,
filhos, noras e netos, continuam a frequentar esta praia e habitar este rancho.
Agora, estava na hora de cuidar do nosso abrigo que como nós, envelheceu, e como nós, precisava de ser bem cuidado para não ruir, para não desmoronar.
Começamos, então, o trabalho de recuperação.
Realmente, ele estava surrado ao longo do tempo pelos ventos do mar. O vento sul, frio e úmido, penetrou impiedosamente pelas frestas e salitrou as ferragens, enferrujando trincos, dobradiças, fechaduras, pregos e parafusos. Descorou a pintura.
Lembro-me, como se fosse hoje, quando o rancho ficou pronto e toda a nossa família veio para o primeiro veraneio.
Éramos quatro irmãos, quatro esposas, pai, mãe
e quatro crianças.
O rancho com treze metros de frente e sete metros de fundo, dividido em quatro quartos; uma sala de refeições e visita juntas; cozinha, despensa, banheiro, área externa atijolada, conta na parte de traz com uma garagem, quarto de empregada, uma pequena cozinha e uma churrasqueira.
Os pés direitos da frente com sete metros de altura, sustentam todo o vigamento e paredes de madeira de pinho.
Originalmente, parte da madeira utilizada nas paredes foi adquirida de um empreiteiro de obras da construção da ponte do rio Tibagi, em Ponta Grossa. O restante de todo madeirame e telhas foram comprados na serraria e olaria da mesma cidade.
Com esse material construí esse mesmo rancho na minha chácara, na Vila Vicentina, em Ponta Grossa, PR.
Lá ele recebeu inúmeras personalidades que iam visitar as plantações de arroz do sequeiro, trigo, soja, milho e outras plantações, nos idos de 1950.
De lá, ele foi transportado de caminhão e montado aqui, à beira mar, na praia de Barra Velha.
No dia que agasalhou toda nossa família, ventava o lestão.
Parecia um desafio ao intruso rancho que vindo de outras plagas, do segundo planalto paranaense, construído com o madeirame daquela região, ousasse enfrentar solitariamente, alicerçado na solta areia da praia, o vendaval oceânico
vindo do leste. Anoitecia, e cada vez mais, o mar rugia e a lestada assoprava violentamente, como se o mundo todo fosse desabar.
O rancho tremeu e gemeu. A madeira estalou e lá fora, cada vez mais, a ventania em sucessivos golpes batia mais forte nas paredes do rancho.
Nunca assisti um temporal tão fantástico e, coisa curiosa, todos que se encontravam dentro do rancho ficaram silenciosos e confiantes que ele venceria a hostilidade do vendaval, naquele embate tão estranho e surpreendente
para ele.
A partir daquele dia amei com admiração a pequena e simples construção, uma das primeiras a ser levantada ao longo da costa da praia, quando não havia luz elétrica, nem água encanada, longe da civilização.
Os ventos do nordeste e terral, também sopram nesta região. O primeiro trazendo aviso aos pescadores e banhistas, de água e ventos quentes. O segundo, que vem do lado da terra ocasionalmente, trazendo mosquitos, insetos e cheiro de terra molhada, morna e abafada - ventos dos montes.
Meus sogros presentearam minha mulher com o terreno no dia do aniversário dela. O rancho foi uma homenagem minha à ela, mãe do nosso primogênito que estava por vir.
Meu pai, patriarca da família, enamorou-se de Barra Velha desde a primeira vez que a viu, e transmitiu a todos nós aquele amor, dizendo sempre que aquele lugar era obra de Deus e que era preciosa a seus olhos.
Sentimentalmente, toda família está ligada a sua casa, seja ela um rancho, ou um palácio. Esteja ela na cidade ou na roça. Num país rico ou no terceiro mundo.
A nossa casa é um sacramento e só deve receber e hospedar pessoas que nos são gratas.
Ela é o nosso agasalho, nosso refúgio, nossa igreja, nosso lar.
Amo-te muito, meu querido rancho.
Aqui tenho vivido muito feliz. As recordações do passado
são límpidas e queridas, os dias de agora são ternos e no porvir meus descendentes irão procurar o seu conforto
e sua simplicidade.
Lá, nos campos gerais, também esses ventos castigaram o então jovem rancho, em dias das geadas e do vento sul, fino, frio, chuvoso. O mesmo daqui de Barra Velha que vindo da Patagônia subindo a Serra do Mar ascende a quase mil metros de altitude. Aqui, ele traz na sua esteira, os cardumes de tainha e de outros peixes que desovam ao longo da lagoa
e do rio Itapocu, num ritual ecológico secular, procriando
as espécies. A pesca predatória tanto da tainha, como do camarão, deveria ser rigidamente controlada pelo governo.
Lá, esse mesmo vento, queima as pastagens e as plantações que são suscetíveis às geadas. Mas por outro lado, beneficia as chamadas culturas de inverno, como por exemplo, o trigo, e mata as larvas e insetos daninhos. É o equilíbrio da natureza que tantas vezes o homem impiedosamente rompe.
- Pai, rancho tem alma? Perguntou-me um dia meu filho.
Respondi-lhe: - Sabe meu filho, um dia, há muitos anos, eu senti o rancho tremer, gemer e estalar de raiva na luta contra o vento leste, durante uma terrível borrasca. Parecia um ser humano enfrentando um terrível e violento inimigo. Ele se comportou com aquela coragem digna de um general num campo de batalha que sabe honrar e respeitar o adversário. Sacudiu-se todo, tremeu, estralava, gritava - um grito de guerra - por entre o assobio do vento e o bufar do mar.
Ele sabia que nós estávamos sob sua guarda, sob a proteção de suas paredes e de seu teto, e quis transmitir a todos nós, a tranquilidade da sua resistência. Depois que a natureza se aquietou, ele humildemente silenciou em respeito ao término da luta, e eu ouvi vagamente, naquele momento, que ele estava pedindo desculpas pelas goteiras que molharam o chão e as camas. Aí, eu disse baixinho a ele: obrigado meu rancho, as goteiras são as feridas do combate que você travou, e ao acariciar com as mãos a viga mestre da parede, tive a impressão de sentir um coração bater.
Cada vez que aqui vinha, ou no instante de cada despedida, nunca deixei de tocar levemente a mão esquerda na parede mais alta, exatamente naquela que sempre me pareceu estar localizado o cerne da construção. Bem ali, na coluna-mestre, vertebral, deveria estar o seu coração. Coração feito de tecido, fibra, células, sais minerais, seiva-vida vegetal.
Há algo de fantástico no elo que separa o reino vegetal do animal. Há, todavia, uma estreita ligação entre eles. A seiva e o sangue. As células, os órgãos, a respiração, a semente e o ovo. No homem o mistério da inteligência. Nos vegetais o mistério da fotossíntese. A vida!
Quando iniciamos os reparos do rancho, casualmente, ou por força do instinto ou da saudade, comecei exatamente ali naquele ponto.
E, outra vez, inesperadamente, toquei naquela parede com a mão e disse baixinho: - Meu velho e querido amigo, desculpe-me o mau trato que lhe dei nestes últimos anos quando passava correndo, apressado e desassossegado por aqui.
A vida exigiu de mim este atropelo, mas isto, é um outro capítulo. Um dia eu vou aquietar e contar para você toda a minha vida e você pode ficar certo que foi aqui que passei os dias mais tranquilos e felizes da minha vida.
A vida da gente oscila entre a tranquilidade e o desassossego.
Foi bem ali que coloquei o macaco e levantei o rancho e, novamente, ouvi o ranger da madeira como se fosse um carinhoso murmúrio.
Ele estava um pouco inclinado na direção leste-oeste. O alicerce, todo maciço de madeira de imbuia, havia escavado a areia ao seu redor e a viga mestra rebaixou-se e inclinou-se quinze centímetros. Todo o rancho acompanhou aquela inclinação.
Mandei tirar as tábuas do assoalho e bem no canto das paredes em cima do alicerce, assentei e levantei a viga mestra com cautela. Lentamente ela voltou a sua posição original e também todo o rancho.
João e Cardoso entreolharam-se e disse o primeiro:
- "que tal nós", ouvindo-se do Cardoso a exclamação - Ê!
Será que eles ouviram aquele perceptível, suave e encantador murmúrio? Será que eles perceberam que eu toquei delicadamente a mão sobre a viga mestra?
Calçamos e reforçamos a base da viga em cima do alicerce. Retiramos o macaco hidráulico que não tinha mais de vinte centímetros de altura e uma pequena alavanca.
Contei ao João e Cardoso o enunciado por Arquimedes
- a lei das alavancas - "dai-me um ponto de apoio
e moverei a Terra".
- Que tal nós! Quem foi esse tal de Arquimedes?
perguntou o João.
- Arquimedes, foi um matemático e inventor grego, nascido em 212 antes de Cristo, em Siracusa, na Sicília. Ele estudou em Alexandria, no Egito, e procurava sempre aproveitar os resultados de seus engenhos mecânicos para facilitar e dar maior rendimento ao trabalho manual.
- Calcule, levantar com os braços esse rancho, hein Cardoso!
- Se não é este Arquimedes!
Pusemos o rancho em posição correta, usando um pequeno nível de pedreiro e um de bolha de ar.
Depois, substituímos as ferragens, pintamos todas as paredes de branco; as portas, venezianas e beiral de verde; e, parte da fachada de marrom. Cuidamos do jardim e do quintal. Ficou lindo, todo novo!
Minha companheira, cuidou de embelezar o rancho, escolhendo as cores das tintas; enfeitando por dentro, com peças da região: um oratório de madeira com uma
Nossa Senhora trabalhada em madeira; uma arca antiga,
um monjolo, lustres rústicos de peneira, uma miniatura de carro de boi, uma roca perfeita e um espinhel de pesca. Forrou as paredes da sala de jantar e visita com esteira de peri e as envernizou.
Todas as noites após o trabalho, minha esposa preparava uma boa porção de peixe e camarões fritos, e outras iguarias deliciosas.
O ar lá fora estava frio, naquela noite de inverno. Soprava o vento sul. O céu estava recamado de estrelas. O mar calmo refletia o brilho da lua cheia que surgia no horizonte.
Pensei como aquilo tudo tinha sido doado ao homem.
Ali estava viva e eterna a Natureza.
Ali está o nosso rancho.
Fotos: Arquivo Pessoal e Família Pimentel.
Antigas de Barra Velha: Internet.
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